Continuando os destaques da obra de Emanuel dos Santos, Sem crescimento não há consolidação orçamental:
5- Tenhamos presente o passo vindo de
citar (no ponto 4 do post precedente). Recordemos, também, muita da obra desenvolvimentista,
ou fontista – como muitas vezes é
designada - de tais anos. Independentemente dos cálculos eleitorais que estejam
na base de um conjunto de medidas tomadas por parte de qualquer Executivo,
classificaríamos (ideologicamente) o Governo de Cavaco como “neo-liberal”, como
fazem Rui Viana Pereira e Renato Guedes, em Quem
paga o Estado Social em Portugal? Considero, tal classificação, inadequada
para descrever a década (política) em causa. Ademais, também no caso em apreço,
sempre diríamos que quando tudo é [classificado como] “neoliberal”, então
qualquer sublinhado especial nesse âmbito, quanto a uma específica governação,
como a actual (portuguesa), deixa de ter efeito – o actual governo não se
diferenciaria, em tal lógica classificadora, de vários executivos precedentes;
então, não se compreenderia o porquê de um alarme relativamente generalizado, e
até transversal, no quadro partidário/ideológico português, face à vigente
governação. Tal como a crítica a qualquer abertura da economia, em tais anos,
ou a reformas como a da Segurança Social, mais recentemente, no primeiro
Governo Sócrates, me parecem desajustadas. Isto, para concretizar aspectos dos
quais me afasto na elaboração dos citados autores.
6-
Apesar da Professora Teodora Cardoso, no
prefácio deste ensaio, considerar tratar-se de um texto redigido “numa óptica
desapaixonada em termos partidários” (p.17), não podemos deixar de a ler,
manifestamente também, como um claro libelo em favor da condução política
(económica) encetada pelos governos de José Sócrates, em particular dos mais polémicos
meses até à queda do governo Sócrates II. Neste sentido, toda a narrativa em
torno de uma política que gerara um crescimento económico de 2,8%, em 2007;
alcançara os valores do défice pactados internacionalmente; empurrados para os
gastos por um consenso europeu que à época apostava na reanimação da economia
por via da despesa (pública); derrubados, internamente, por uma coligação de
forças de direita e de esquerda que chumbaram o PEC IV e
criaram todo um naipe de dificuldades ao Governo e ao país é recuperada com
grande intensidade, da Introdução até
aos capítulos finais do livro.
7-
O ajuste de contas com a história tem um
outro alvo que, nunca enunciado directamente, nunca nomeado, aparece de modo
latente: Teixeira dos Santos. O ministro das Finanças, incompatibilizado com
Sócrates, é, pois, aqui, contraditado, no que a uma frase que tem dominado
muitos dos nossos debates públicos, no último ano, diz respeito. “Não tínhamos
dinheiro para pagar salários” a partir de Maio de 2010, sem recurso à troika,
disse o ex-ministro. A frase converteu-se, na verdade, no argumento sempre
esgrimido quando, no interior da actual coligação e governo, necessário era
legitimar cada nova medida, cada lei controversa, quando se pretendia
deslegitimar cada crítica do PS.
“No
primeiro semestre de 2011 as receitas cobradas de impostos sobre o rendimento
(IRS e IRC) ascenderam a 5,643 mil milhões de euros e os salários pagos aos
trabalhadores do Estado e dos Fundos de Serviços Autónomos somaram 5,099 mil
milhões de euros, ou seja, o valor da cobrança de apenas dois impostos foi
suficiente para pagar todas as remunerações certas e permanentes da
responsabilidade da Administração Central. Note-se que a soma daqueles dois
impostos é inferior à receita arrecadada no mesmo período respeitante ao IVA
(6,644 mil milhões de euros). Ora, numa situação em que a confiança no país
estava a ser abalada, a atitude mais correcta não era contribuir para esse
processo de descredibilização, mas antes pelo contrário, destacar as nossas
capacidades e virtualidades, como era, no caso, a boa execução orçamental”
(p.94); “demonstramos como o argumento da falta de dinheiro para pagar salários
não tinha fundamento. Aliás, desde que a economia seja capaz de gerar receitas
fiscais e a respectiva administração tenha capacidade para as cobrar, o
dinheiro para financiar as funções do Estado só falta se não houver rigor na
gestão dos serviços públicos ou se for utilizado para satisfazer amortizações
de dívida pública que os mercados não refinanciam em condições razoáveis” (p.92/93);
“é altura de nos interrogarmos sobre a afirmação tantas vezes repetida «sem
ajuda externa não haveria dinheiro para salários». Em termos de fluxos, de
conta de exploração, demonstra-se que não é assim, a não ser que se prossiga
sem limites numa política que leva ao definhamento da economia. No final, o
Estado não terá dinheiro para os salários dos funcionários públicos e os
cidadãos não terão dinheiro para pagar os impostos ao Estado” (p.127).
Assim,
no balanço que a história fizer do período em causa – aliás, balanço que, de um
modo mais ‘instantâneo’, e à semelhança de práticas (jornalísticas) idênticas
vistas em outros países, se começa a fazer, com obras, como a de David Dinis e Hugo Filipe Coelho,
que procuram recriar o que sucedeu no período que antecedeu o pedido de ajuda à
troika, com investigação (jornalística) de qualidade, como a de Cristina Ferreira no Público, publicada nos jornais,
sobre o mesmo tema -, já não haverá lugar a uma interpretação unívoca, tal a
versão tão aguerridamente defendida e justificada por Emanuel dos Santos.
8-
Se tudo o que foi feito, ao nível da
política (económica), pelo governo de José Sócrates, foi bem feito, porque caiu,
então, o país no abismo, porque se atiraram
a nós os mercados, não confiando no
reembolso que prometêramos fazer do empréstimo contraído?
No
entender de Emanuel dos Santos, há três factores que explicam a atitude dos
mercados: a) “primeiro, a percepção externa da situação económica portuguesa
que sofreu uma forte deterioração em resultado da acentuação de todos os dados
negativos que eram publicados e das explicações de carácter estrutural que se
tornaram lugar-comum nos fora da comunicação
social. Entre outras consequências, a revelação, intensa e exagerada, das
nossas debilidades estruturais ajudou as agências de rating a convencer-se de que o risco de default era elevado e, em consequência, a baixar drasticamente a
notação da dívida pública e dos bancos portugueses em conformidade”; b)
“segundo, a ausência de uma maioria parlamentar de apoio ao Executivo que
garantisse a estabilidade política”; c) “terceiro, a percepção pelos mercados
de que o Banco Central Europeu não iria intervir o suficiente para estabilizar
os mercados da dívida pública de Estados-membros periféricos”.
Espanta,
em rigor, como na enumeração dos factores que levaram a uma (autêntica) punição
do país, não se elenca um único motivo no qual a assunção de uma evidente
responsabilidade própria esteja presente; não há, pois, lugar, a nenhum mea culpa. E, todavia, perante o
dinheiro gasto em projectos mais ou menos megalómanos (mesmo os que, como
muitos suponham e advertiram, nunca vieram a concretizar-se), duplicação de
estradas (desérticas), aeroportos às
moscas e coisas que tais, seria de esperar outro sentido auto-crítico. Mas,
mesmo aqui, não dispersemos, e vejamos como essa auto-crítica pode – deve! –
estar presente (neste elencar) no que à ausência de uma maioria parlamentar de
apoio ao Governo diz respeito. A encenação pós-eleitoral de procura de um
entendimento com outras forças partidárias – vontade que nunca existiu;
provavelmente, o mesmo se diga das restantes forças partidárias, mas cabia ao
Governo um especial papel na busca de um entendimento, e todo o processo foi,
deliberadamente, mal conduzido – foi lamentável e, nela, houve clara
irresponsabilidade face ao momento vivido, na nossa história política recente.
Mesmo no interior do Executivo, houve quem, publicamente, se afirmasse por uma
coligação maioritária, pelo que à liderança do mesmo pertencem especiais
responsabilidades.
9-
O arrazoado de Emanuel dos Santos
procura mostrar, com profusão de números, a falácia das gorduras do estado como algo que, suprimido, nos levaria a bom
porto. Não chega cortar nos consumos
intermédios. Para os que tivessem ilusões a este propósito, relativo à estrutura
da despesa pública portuguesa, efectivamente, este ano de governação demonstrou
que não era por aí que o Orçamento se equilibrava.
10- Outro dado significativo prende-se com a
ideia, neste livro avançada, de que se, há dois anos, não tem sido cortado o
financiamento à nossa economia, a situação não ia mal; quer dizer, de um ponto
de vita estrutural a situação da economia portuguesa estava longe de ser
dramática quando os mercados, há dois anos, nos cortaram o financiamento. Para
se perceber o específico peso do item financiamento
externo em uma economia, pensem no que seria cortarem o financiamento
externo às grandes economias europeias e vejam, diz o autor, que o problema não
era (exclusivo) português. Estas potências passariam, igualmente, muito mal.
Mais: em 2009, com uma recessão bem inferior à média da UE, a economia nacional
mostrou uma robustez que contrariou todas as vozes catastrofistas. Quanto à
riqueza nacional consumida pelo Estado, “alguns comentadores e alguns também
economistas costumam afirmar, talvez para impressionar o cidadão comum, que o
Estado já consome metade da riqueza produzida no país. Que o comentador o diga
para defender pontos de vista doutrinários de algum grupo de interesse, ainda
se compreende, agora que licenciados em economia e alguns professores o façam,
já é menos compreensível. A questão esclarece-se facilmente utilizando apenas
conceitos e agregados das contas nacionais: os gastos do Estado (despesas com
funcionários, consumos intermédios e investimento) representavam em 2010 apenas
20,6 por cento do PIB”(p.124). O que se joga aqui é a distinção, tão subtil
quanto crucial, entre “despesa pública” e “gastos do Estado”. Proceder a ela –
ou omiti-la – é, por conseguinte, digamos assim, um gesto político.
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